Gustavo Alonso, autor do livro Cowboys do asfalto, conta em entrevista como foi sua pesquisa e indica discos para entender o gênero musical
Como foi sua aproximação com a música sertaneja?
Sou carioca. Não fui criado com a música sertaneja entre as minhas primeiras audições. Ao longo da pesquisa, fui ouvindo canções que já tinha escutado, mas cujas histórias eu desconhecia. Fui aprendendo a gostar. Como em todo gênero, gosta-se mais de alguns artistas e menos de outros. Gosto muito do Trio Parada Dura, de João Bosco & Vinícius, Michel Teló e Victor & Leo.
O livro foi lançado logo depois da morte do cantor Cristiano Araújo. Quais foram as suas reflexões a respeito da repercussão que o episódio teve na imprensa brasileira e sobre a reverberação nas redes sociais?
Em parte, o repúdio ao fenômeno que se seguiu à morte de Cristiano Araújo se deve ao desconhecimento do “Brasil profundo”. Grande parte da crítica é feita por gente formada no Sudeste, seja direta ou indiretamente. Os padrões de análise da música brasileira foram forjados no Sudeste ao longo do século XX. E, até os anos 1990, a música era obrigatoriamente gravada no Sudeste. Depois virava sucesso nacional. Foi assim com Luiz Gonzaga, Elis Regina, Roberto Carlos, Legião Urbana. Desde os anos 2000, com a popularização das gravações digitais, todos somos produtores de conteúdo. A crítica se choca com a música sertaneja universitária por não ter acompanhado esse processo. A música do sertanejo universitário foi produzida e distribuída inicialmente de forma capilar, pela internet. Não precisou passar pelos grandes centros.
Veja por exemplo o sucesso de 2012 Tchu tcha tcha (Eu quero tchu, eu quero tcha), de João Lucas & Marcelo: “É uma dança sensual, em Goiânia já pegou/Em Minas explodiu, Tocantins já bombou/No Nordeste as mina faz, no verão vai pegar/Então faz o tchu tcha tcha, o Brasil inteiro vai cantar.” Trata-se de uma nova realidade, na qual Goiânia, Tocantins e os estados do Nordeste são culturalmente tão importantes quanto a capital carioca ou a paulista. Na qual os sucessos nacionais não precisam passar por estes centros. A crítica não soube acompanhar isso. Daí o choque quando viram as multidões no velório e enterro de Cristiano Araújo.
Por outro lado, Cristiano Araújo não tinha a fama de Paula Fernandes, nem a história de Cesar Menotti & Fabiano, nem começou de forma independente na internet com força, como Luan Santana. Foi um artista que começou a fazer sucesso a partir de 2011 e estava em franca ascensão, mas ainda estava longe de ter elevado a música sertaneja a outro patamar, como fez Teló com Ai se eu te pego.
Quais foram os principais desafios da pesquisa, as informações mais difíceis de conseguir?
Foram oito anos de pesquisa e escrita. De 2007-8 a 2015. De muita pesquisa, dedicação, solidão. Trabalhar com música sertaneja no Rio de Janeiro é duro. Quase ninguém achava o tema relevante. Tive que ter coragem nessa empreitada solitária. Não havia bibliografia considerável sobre o tema. Então tive que trabalhar muito para conseguir apurar tudo que queria. Tive que fazer viagens para entrevistar personagens. Passar semanas em arquivos. Correr atrás de discos perdidos em sebos do interior… Enfim! Um trabalho árduo. Mas, ao final, foi muito prazeroso, pois eu estava sempre aprendendo algo novo e conhecendo um “Brasil profundo”, que ultrapassa a nossa epiderme litorânea.
Depois da pesquisa feita, quais conclusões mais te surpreenderam?
Há várias conclusões surpreendentes no livro. Uma delas eu adorei pesquisar e escrever sobre. Trata-se da distância entre nossa intelectualidade e os sucessos populares. Para ilustrar isso, usei o caso da viagem de Milionário & José Rico à China para uma turnê em 1986, história ótima, que diz muito sobre nossas contradições. Eles foram convidados pelo governo chinês, que prometeu estadia completa, devido ao enorme sucesso de seu filme Estrada da vida por lá. O filme, dirigido por Nelson Pereira dos Santos, o pai do Cinema Novo, havia sido lançado em 1981 no Brasil. Pouco tempo depois, Estrada da vida chegou ao Oriente e os chineses se encantaram. O governo chinês percebeu o fenômeno e os convidou em 1986, quando Brasil e China reatavam relações diplomáticas. Milionário & José Rico foram então pedir a verba da passagem ao Ministro da Cultura, o paraibano Celso Furtado, pai do desenvolvimentismo brasileiro, que voltou do exílio, se engajou na redemocratização no PMDB e aceitou ser ministro do governo Sarney. Furtado negou o financiamento, pois nunca ouvira falar de Milionário & José Rico. Eles tiveram que bancar do próprio bolso a viagem. Esse episódio demonstra como as nossas elites intelectuais sempre tiveram dificuldade de entender o fenômeno que é a música sertaneja.
Quantos discos de música sertaneja você ouviu durante o processo? Desses, qual foi o disco mais difícil de encontrar?
Ouvi todos os discos que encontrei pela frente. Fica difícil mensurar. Cada dupla lançava discos anuais. E cada uma delas tem em média 20 anos de carreira. Isso para falar na média, pois duplas como Chitãozinho & Xororó têm mais de 45 anos de carreira. Tonico & Tinoco começaram na época do compacto, então têm mais discos ainda. Enfim, foram milhares, nunca parei para mensurar porque eu estava atrás de informação qualitativa nestes discos, não da quantidade.
A música brasileira é repleta de discos cultuados, muitos deles, raros, disputados pelos colecionadores (como Tim Maia Racional, para ficar apenas em um exemplo). Existe algo semelhante na música sertaneja? Quais os discos mais valiosos do gênero e por quê?
Essa coisa de cultuar discos é recente na música brasileira, inclusive na MPB, apesar de parecer que “sempre foi assim”. Não é verdade. Nos anos 1990 não havia esse culto que há em relação ao disco Transa, de Caetano Veloso, por exemplo. O disco Tim Maia Racional também ninguém ouvia com atenção. Era o disco de um momento “religioso” de Tim. E, afinal, até o próprio Tim Maia rejeitava este disco e impediu seu relançamento enquanto viveu. De forma que esse culto ao passado em disco é bem recente. Aliás, até a própria ideia de achar LPs uma coisa legal e “colecionável” é bem recente. Tornou-se moda na ultima década. Mas antes era coisa para poucos “loucos”.
Na música sertaneja também há esse fenômeno de se celebrar determinados LPs, mas talvez em menor proporção. Afinal, grande parte dos fãs de música sertaneja cultuam mais músicas do que discos. Mas há discos clássicos (alguns dos quais serão citados na próxima resposta).
Quem comporia uma lista de 10 discos essenciais para entender a música sertaneja?
Listas são sempre polêmicas. Fiz apenas uma lista de 10 LPs ou CDs. Fui obrigado a excluir compactos de Tonico & Tinoco, por exemplo, cuja produção áurea foi, sobretudo, lançada em compactos e não em LPs ou CDs. O mesmo vale para o grande sucesso Pagode em Brasília, lançado por Tião Carreiro & Pardinho em compacto, então não entrou na lista. Também rejeitei aqueles que não se identificavam, na época do lançamento do disco, com o rótulo “sertanejo”. Isso vale, por exemplo, para Sergio Reis, que nos anos 1970 lançou seu clássico LP Saudade da minha terra. Naquela época ele não se identificava com a denominação “sertanejo”, preferindo se ver como “caipira”. Por isso, não entrou na minha lista. Foquei bastante nos novos artistas. E evitei repetir discos de uma mesma dupla/artista.
Leo Canhoto & Robertinho – LP Leo Canhoto & Robertinho (1969)
É o primeiro disco da música sertaneja a incluir guitarras na música rural brasileira. Causou fascínio e repulsa na mesma proporção. Seu enorme sucesso fez sedimentar gerações de sertanejos que aceitaram o rock pós-Beatles como uma das matrizes da música sertaneja. Eles abriram as portas para o crescente sucesso do gênero.
Milionário & José Rico – LP Estrada da vida – Trilha sonora do filme (1980)
É o disco que serviu de trilha sonora para o filme de Nelson Pereira dos Santos sobre Milionário & José Rico. A canção Estrada da vida, uma rancheira composta por José Rico e inspirada nas canções do mexicano Miguel Aceves Mejia, foi o maior sucesso da dupla.
Trio Parada Dura – LP Último adeus (1981)
Este disco tem aquela que é considerada por Chitãozinho a melhor canção sertaneja de todos os tempos, a música Último adeus. De fato, uma grande canção. E também Fuscão preto, de enorme sucesso popular até hoje. E também o protesto antirracista Homem de cor. Vale a pena conhecer este disco.
Chitãozinho & Xororó – LP Somos apaixonados (1982)
Foi o primeiro disco da música sertaneja que vendeu 1 milhão de exemplares. Tudo por causa de um Fio de cabelo.
Leandro & Leonardo – LP Leandro & Leonardo (1989)
Disco que tem o hit Entre tapas e beijos, que transformou a música sertaneja em sucesso nacional, rompendo as antigas amarras regionais do gênero.
Zezé Di Camargo & Luciano – CD Zezé Di Camargo & Luciano (1992)
Um disco equilibrado, cheio de hits e canções que marcaram gerações, como Coração está em pedaços, Muda de vida, Cara ou coroa, Leva minha timidez e Cama de capim, além de um protesto contra a condição degradante da infância no Brasil em Garoto de rua.
Bruno & Marrone – CD Acústico (2001)
Disco originalmente lançado de forma independente, fruto de uma gravação de um programa numa rádio goiana. O sucesso foi tão grande que a gravadora resolveu lançar o disco um pouco melhor produzido. Mostrou que a estética do “acústico” poderia ser incorporada pelos sertanejos, um caminho que se tornou a norma em todos os discos da geração posterior, a dos universitários.
Victor & Leo – CD Borboletas (2008)
Um dos melhores discos dos universitários e da música brasileira no primeiro decênio do novo milênio. Grandes canções: simples, diretas, precisas, hits para tocar em qualquer casa, seja no sertão, seja no litoral. O violão de Victor, um especialista em cordas de aço, forja uma escola para o violão brasileiro, que, desde João Pernambuco a Gilberto Gil e João Bosco, passando por João Gilberto, Rafael Rabello e Yamandu Costa, sempre teve no violão de cordas de nylon sua principal escola. Pois Victor mostra como o violão de cordas de aço pode ser tão brasileiro quanto qualquer instrumento. Um grande disco.
Michel Teló – CD Michel na balada (2011)
Com grandes hits como Ai se eu te pego e Humilde residência, levou a música sertaneja a se tornar um gênero reconhecido fora do Brasil, reconhecimento que antes apenas Garota de Ipanema havia obtido com a mesma envergadura.
Paula Fernandes – CD Paula Fernandes ao vivo (2011)
Um disco que fez uma desconhecida do grande público se tornar uma estrela nacional em poucos meses.
Acredita que o seu livro pode ter o impacto do Eu não sou cachorro, não, livro de Paulo César de Araújo que revalidou a chamada música cafona? E por falar nisso, você acha que o sertanejo precisa desse aval?
A música sertaneja nunca precisou de aval da palavra escrita. Aliás, seus atores têm em geral pouca intimidade com a palavra escrita, daí a minúscula quantidade de livros sobre o tema. Seja como for, é importante para um gênero que sempre esteve aberto a influências dialogar com mundos que não são originalmente o seu. Por essa razão, venho recebendo e-mails de fãs e pesquisadores entusiastas da música sertaneja elogiando meu livro. Se até o sertanejo se tornou “universitário”, não me surpreende que tenha havido aumento de leitores brasileiros. Razão à qual atribuo parte do sucesso do livro. Novamente a música sertaneja ilustra uma mudança, gradual, pequena, de longa duração, mas importante, da sociedade brasileira.
Fonte: Portal Brasil e Cowboys do asfalto.